Profundo, brilhante, esclarecedor. Aqui o gostinho da escrita de Saramago que explica bem o que é o sistema de poder e a burocracia:
Narrador: Um homem foi bater à porta do rei e disse-lhe:
Homem do barco: Dá-me um barco.
Narrador: Um homem foi bater à porta do rei e disse-lhe:
Homem do barco: Dá-me um barco.
Narrador: A casa do rei tinha muitas mais portas, mas aquela era a
das petições. Como o rei passava todo o tempo sentado à porta dos obséquios
(entenda-se, os obséquios que lhe faziam a ele), de cada vez
que ouvia alguém a chamar a porta das petições fingia-se desentendido,
e só quando o ressoar contínuo da aldraba de bronze se tornava, mais
do que notório, escandaloso, tirando o sossego à vizinhança, as pessoas
começavam a murmurar:
Pessoas do reino (murmurando): Que rei temos nós, que não atende?
Narrador: Ai que dava-se a ordem ao primeiro-secretário para ir saber
o que queria o impetrante, que não havia maneira de se calar. Então,
o primeiro-secretário chamava o segundo-secretário, este chamava
o terceiro, que mandava o primeiro-ajudante, que por sua vez mandava
o segundo, e assim por aí fora até chegar à mulher da limpeza, a qual,
não tendo ninguém em quem mandar, entreabria a porta das petições e
perguntava pela frincha:
Mulher da limpeza: Que é que tu queres?
Narrador: O suplicante dizia que vinha, isto é, pedia o que tinha a
pedir, depois instalava-se a um canto da porta, à espera de que o requerimento
fizesse, de um a um, o caminho ao contrário, até chegar ao
rei. Ocupado como sempre estava com os obséquios, o rei demorava
a resposta, e já não era pequeno sinal de atenção ao bem-estar e felicidade
do seu povo quando resolvia pedir um parecer fundamentado
por escrito ao primeiro-secretário, o qual, escusado seria dizer, passava
a encomenda ao segundo-secretário, este ao terceiro, sucessivamente,
até chegar outra vez à mulher da limpeza, que despachava sim ou não
conforme estivesse de maré. Contudo, no caso do homem que queria
um barco, as coisas não se passaram bem assim....
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